Esculturas & Pinturas inspiradas em D.Pedro e D.Inês

Diário de D. Inês

Querido diário:

1336

Estou agora de malas prontas e preparada para acompanhar D. Constança, minha princesa e amiga, para Lisboa.
A sua chegada está preparada minuciosamente; nenhum pormenor é descurado e o nosso cortejo é constituído por gente ilustre, nobres e fidalgos, damas, e muito mais, para irmos ao encontro de D. Pedro, príncipe herdeiro da coroa portuguesa e filho de D. Afonso IV e de D. Beatriz.

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1339

Foi na Sé de Lisboa que se celebrou o casamento de D. Constança e de D. Pedro, com a capital enfeitada, em festa e todos os presentes radiosos de felicidade!
Não foi difícil perceber o que os pais de D. Pedro achavam deste enlace – D. Constança era a nora que sempre quiseram ter, principalmente depois do casamento com a infértil D. Branca – mas também era sabido que D. Pedro não casara por amor.

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1340

Passava os meus dias acompanhando a minha princesa e aproveitando todos os entretenimentos a que tinha acesso: a leitura, a música e ria-me imenso vendo o bobo da corte! Levava uma vida feliz, tranquila e despreocupada.
Certo dia, um dia quente e em que o sol ia alto nos céus dos jardins do castelo, senti o amor a pairar sobre mim e ele, lindo com as suas barbas negras como o carvão, os seus olhos ternos infinitos e o seu porte robusto, o complemento para o meu corpo delicado de mulher.
Não havia dúvidas, muito menos à medida que os dias se desenrolavam trazendo novos momentos e descobertas a dois. Estava apaixonada por D. Pedro e D. Pedro estava apaixonado por mim, a dama de companhia da sua esposa que não amava, D. Constança. Não podíamos disfarçar toda a paixão e carinho que existia entre nós, embora cientes de que o mundo não podia estar senão contra o nosso sentido amor proibido.

Querido diário:

1342

O amor que existe entre mim e D. Pedro começava a ecoar perante pessoas próximas, levantando suspeitas e mexericos; suspeito que não tarde muito até que o meu grande medo – que toda esta história de amor puro e simultaneamente pecaminoso seja descoberta – se torne realidade.
Sinto-me ainda pior agora que D. Constança está num estado de fragilidade particular, acabada de dar à luz o seu segundo filho, infante D. Luís, cujo pai tem outras distracções que lhe tiravam tempo e lhe levavam o pensamento dos sítios onde devia estar. Essas outras distracções são, na verdade, eu própria.
O pequeno tem preenchido de alegria o castelo, e eu carrego o meu coração dividido entre o contentamento pela chegada do recém-nascido, o amor que sinto por Pedro e a culpa. Penso em como podem caber tantos sentimentos, tão diferentes, dentro de mim.

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Temo que tudo se tenha tornado real! D. Constança convidou-me para ser madrinha do menino. Devia estar feliz por este aparente voto de amizade por parte de D. Constança, mas decifro a verdadeira intenção por detrás de tão maravilhoso convite: afastar-me definitivamente de D. Pedro!
D. Constança, afinal, não ignorava tudo o que se passava no seu próprio castelo, com o seu próprio marido e a sua dama de companhia; era bastante astuta. Se me tornasse madrinha do pequenote, jamais tudo isto poderia continuar. Tornar-me-ia irmã do meu amado e continuar a relacionarmo-nos seria um crime de incesto, contra as leis da Igreja. A pouca ética do nosso amor seria nada mais, nada menos, do que isso mesmo – nada. Não podia recusar o convite, teria de recusar os gritos do meu coração.
Deixei a minha mente vaguear, como tantas vezes tinha feito… Carregar no meu ventre um filho de Pedro, o meu “irmão”, seria um filho e um sobrinho para ele, um primo e irmão para o pequeno Luís.
Apesar de tudo, o meu amor por Pedro era mais forte do que tudo: deixaria D. Constança pensar que tinha ficado iludida, como era seu objectivo, com a proposta, quando na verdade, a iludida da história era ela mesma.
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1345

Querido diário:

Em mais uma noite proibida, em que suspirava nos braços fortes e seguros do meu amor, tudo corria bem: beijos ternurentos e momentos de loucura, quando o meu mundo parou e pareceu ter caído por momentos.
D. Constança estava grávida novamente, disse-me ele. Imaginei Pedro no regaço de outra mulher que afinal é (ou deveria ser) a quem verdadeiramente pertence.
Afaguei-lhe o peito felicitando-o. O filho que ele formara no corpo de D. Constança é o filho que eu desejo, um dia, ter também!
O ciúme que sinto ao pensar em toda esta situação, dilacera-me, mas tenho consciência de que o nosso filho será fruto de amor e não como este, nascido de uma fachada.

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O castelo, nestes últimos dias, comporta apenas tristeza, vazio, luto. Visto-me de negro pela minha agora falecida rainha e carrego nos ombros culpa, mas também, e embora me custe admitir, um certo alívio e sensação de liberdade.
D. Constança morreu ao dar à luz e Pedro é agora viúvo… e livre para me amar legitimamente. É um pensamento um pouco perverso, pois ainda há pouco tempo enterrámos D. Constança, mas o tempo urge.
Agora podemos, finalmente, exprimir o nosso amor perante todos, sem enganar inocentes que se cruzam na nossa história proibida, tal como era a rainha que nunca consegui odiar e sem medo do mundo e do que há-de vir.
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1349

Querido diário:

Como pode um pai fazer tal coisa a um filho?! Mandar para o exílio a mulher que Pedro ama e que o faz feliz! Não sinto pena de mim própria, nem sequer medo do que aí possa vir… Tão-somente uma dor no peito que antevê a distância que me separará do meu amado.
Temo que uma brecha se abra no meu coração, mas tenho absoluta certeza de que nem Albuquerque nem qualquer outro lugar do Mundo apagarão a nossa história, extinguirão o presente ou impedirão o futuro. Apesar de tudo, o nosso amor, finalmente livre, está, agora, condicionado.

1350

Contra tudo e contra todos. Pedro lutou com o seu pai e trouxe-me de volta à nossa morada de amor, ao lugar onde pertenço.
Vislumbro o rio Mondego e a minha doce Coimbra e suspiro aliviada por D. Afonso se conter pela desobediência do seu filho. Se Pedro deixasse de viver, também eu não continuaria neste mundo.
Mas agora que regressei, começa, definitivamente, uma nova era de amor pleno e feliz para nós. Sorrio, ao mesmo tempo que levo a mão ao ventre, onde carrego o filho de Pedro. O meu sonho de sempre transformou-se em realidade!

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O meu pequeno Dinis é o reflexo de toda a beleza e robustez de Pedro, mesmo na pequenez dos seus poucos dias de vida.
É o fruto do nosso amor e é a ele que dedico a minha atenção e carinho. Depois de o amamentar e embalar no meu colo, deito-o, adormecido, entre mim e o seu pai. É aí que me entrego a Pedro e mantemos viva a paixão que nunca será apagada.
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1354

Querido diário:

O castelo frio e infinito permite o livre-trânsito de rumores. As paredes têm ouvidos…
Diz-se que os conselheiros do rei tudo têm feito para o convencer a terminar com a minha vida. Acredito que não será preciso muito para isso acontecer, visto que sinto que D. Afonso não tem outros sentimentos por mim que não raiva e ódio.
Invocam para tal crueldade o perigo da perda do trono, por causa das minhas raízes castelhanas associadas à minha relação com Pedro, herdeiro do trono.
Tudo o que me preocupa é esconder estes boatos do meu amado, para que, caso se venham a concretizar, ele não se culpe por não o poder ter impedido e para que possamos desfrutar um do outro, sem recear um término.

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1355

Este livro de confidências está pousado no parapeito enquanto escovo os meus cabelos cor de oiro, mirando pela última vez o jardim coberto de geada e, mesmo assim, tão belo e cheio de recordações.
Sinto passos atrás de mim e sei que é o meu amado, caminhando ao meu encontro. O hálito fresco de Pedro encontra o meu pescoço desnudo e ele acaricia-me as costas com as mãos ásperas. Puxa-me para si e conduz-nos para a cama, numa dança tão costumeira quanto especial.
Sucumbimos no corpo um do outro por entre os lençóis de seda branca e a paixão entre nós parece fazer derreter todo o gelo que há lá fora.

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Amanhece. O céu adquire tons mais claros, anunciando um dia, porém, negro como breu. Escrevo-te pela última vez.
Pedro saiu há poucos minutos, beijando-me e afagando-me a face antes de partir para uma caçada. Na sua ignorância, sem perceber o significado esmagador dessas palavras, “Amo-te para sempre”. Depois bateu a porta, deixando-me só como em tantos outros dias, mas hoje, esperando a morte iminente.
Espreitei pela janela, vendo-o partir enquanto as lágrimas me brotavam dos olhos.
De seguida, corri para o quarto dos meus frágeis e queridos filhos, que dormiam profundamente. Observei os seus rostos angelicais e beijei a testa a cada um deles, derramando cada vez mais lágrimas de amargura. Penso em como ficarão sozinhos, enfrentando as guerras e espinhos, mas restará Pedro para os proteger e vingar a minha morte.
Ouço passos pesados no corredor e um bater violento na porta. Chegou a minha hora. Obrigada por guardares os meus segredos…

Inês de Castro

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